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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Condômino que reclamava até do barulho da descarga da vizinha terá de pagar dano moral

Um morador de condomínio em Balneário Camboriú deverá  indenizar sua ex-vizinha por reclamações que ultrapassaram a razoabilidade. A decisão foi prolatada pelo Juizado Especial Cível daquela comarca, que fixou a indenização, a título de danos morais, em R$ 5 mil. 

Consta nos autos que o réu reclamava insistentemente de barulhos comuns oriundos de conversas, da máquina de lavar roupas, da televisão e até mesmo do ruído da descarga do vaso sanitário. Após insistentes queixas e chateada com a situação, a única solução encontrada pela vizinha - uma senhora já idosa - para livrar-se das reclamações foi sair do apartamento onde residia desde 2019. Em sua defesa, o homem alegou que a autora era a responsável por perturbar seu sossego, pois não respeitava as regras condominiais, com barulho excessivo, de forma que inexiste direito a compensação de qualquer espécie. 

Após relatos das testemunhas arroladas pela autora e pelo réu, a juíza Alaíde Maria Nolli verificou a existência de ato ilícito passível de indenização. "Isso porque ultrapassou o exercício regular de direito a perturbação e perseguição gerada pelo requerido, que obrigou a autora a rescindir a locação e desocupar o imóvel para se ver livre das constantes reclamações do vizinho. As testemunhas expuseram, de forma nítida, que o réu oferece muitas reclamações infundadas sobre o apartamento, não só da autora, mas de outros inquilinos que ali residiram", cita.

O vizinho foi condenado ao pagamento de R$ 5 mil à autora, a título de dano moral, corrigido monetariamente e com juros desde o evento danoso, em maio de 2020. A sentença, de 17 de fevereiro, ainda pode ser objeto de recurso (Autos n. 5008288- 90.2020.8.24.0005/SC).



Fonte:https://www.tjsc.jus.br/web/imprensa/-/condomino-que-reclamava-ate-do-barulho-da-descarga-da-vizinha-tera-de-pagar-dano-moral?inheritRedirect=true


terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

DANO MORAL NOS CONDOMÍNIOS –

 GRUPOS DE WHATSAPP -  MORADOR É CONDENADO EM R$ 6.000,00 POR OFENSAS


 

 A vida em condomínio exige respeito as regras impostas pela lei, convenção e regimento interno do condomínio. E acima de tudo, bom senso.

 

A tecnologia é grande aliada dos moradores e do síndico, por exemplo, com a troca de informações sobre segurança, a utilização de aplicativos para reserva das áreas comuns dentre outras.

 

É comum a criação de grupos de WhatsApp para deliberação de assuntos de interesse dos moradores, contudo, não menos comum, são utilizados para a prática de ofensas.

 

Foi o que aconteceu na cidade de Salvador – BA.  Dois moradores iniciaram uma discussão em grupo de WhatsApp com mais de 200 pessoas a respeito de um pinheiro localizado na casa de um, cujos galhos caiam na residência do outro.

 

Em meio as discussões um dos moradores acusou a outro de tráfico de influência na prefeitura da cidade de modo a impedir a poda da árvore.

 

Ofendida, a moradora procurou uma delegacia de polícia e registrou boletim de ocorrência por falsa imputação de crime (calúnia), cuja ação penal foi julgada em desfavor da acusada.

 

A ofendida também ajuizou ação de danos morais e obteve sentença favorável que condenou a outra parte no valor de R$ 6.000,00.

 

Consta do acórdão

 

“Aduzem os autores que recorrem ao Poder Judiciário buscando a condenação a título de indenização por danos morais, em razão de por ofensa à honra dos acionantes, praticada pela recorrida, em razão de mensagens enviadas para um grupo do aplicativo WhatsApp, que reúne 200 (duzentos) moradores do Condomínio Pedras do Rio, onde residem. Alegam que no dia 12 de maio de 2017, após o 3º Recorrente queixar-se no grupo acerca da realização de cerimônias religiosas realizadas em residência próxima, a parte recorrida resolveu manifestar-se a respeito e passou a proferir comentários ultrajantes contra o 3º Recorrente e seus pais (1º e 2º Recorrentes). Afirmam que, em meio aos insultos contra o 3º Recorrente, a Recorrida chegou a imputar fato falso tido como crime, o que ensejou o ajuizamento de ação penal privada por calúnia nº 0003985-07.2017.8.05.0150”.

 

[...]

“Entretanto, conforme se verifica no acórdão anexado ao evento nº 16, a Egrégia Quinta Turma Recursal deste Estado, deu provimento ao apelo interposto pelos acionantes, e CONDENOU CRIMINALMENTE a ré, por haver violado o disposto no art. 138, combinado com os art. 141, incisos III, ambos do Código Penal, por imputar falsamente, fato definido como crime de tráfico de influência, art. 332 do Código Penal, a um dos autores”.

 

“A propósito, o legislador estabeleceu o sistema de independência relativa entre os juízos penal e cível, determinando sempre que os fatos discutidos pelo juízo penal tenham relevância para o julgador civil, de modo que a declaração do juízo penal sobre sua ocorrência ou inocorrência, seja tomada como premissa imutável e inafastável para o julgador cível”.

 

“Com efeito, dispõe o art. Art. 935 do Código Civil: A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”

 

“Ademais, o art. 91, I, do Código Penal, que estabelece os efeitos da condenação criminal, torna certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime, sendo certo que a sentença penal condenatória produz efeitos extrapenais”.

 

“Assentado esse princípio, tem-se que a sentença penal condenatória, por si só, é suficiente para justificar o pleito indenizatório, tanto mais porque, no caso em apreço, o delito praticado, sem qualquer incerteza, abalou objetivamente a honra e a reputação dos recorrentes”.

 

“A jurisprudência mais atual tem reconhecido que todo dano moral causado por conduta ilícita é indenizável como direito subjetivo da própria pessoa ofendida”.

 

[...]

 

“Com base nessas premissas, considerando-se a circunstância de que a indenização deve ter, sim, caráter punitivo, penalizando a conduta imprópria, desleixada e negligente, como a adotada pela Ré, desestimulando a prática de novos atos ilícitos, é de se entender, que o valor da condenação, deve ser arbitrado em R$ 6.000,00 (seis mil reais)”.

 

[...]

  PROCESSO Nº 0005219-24.2017.8.05.0150


É fundamental que o síndico, se for ele o administrador do grupo, crie regras para utilização e boa convivência do grupo, divulgando-as constantemente e/ou sempre que for adicionando um novo integrante.  Deve deixar claro que assuntos alheios ao condomínio, tais como propaganda política, não serão permitidos, ofensas, crimes contra a honra etc.  Importante lembrar que o administrador de grupo de WhatsApp pode responder por dano moral caso permita a prática de ilícitos ou ofensas nos grupos, já há decisões judiciais nesse sentido.

 

Por fim, calhar dizer que o grupo de WhatsApp não deve substituir o meio determinado no condomínio para registro de ocorrências, seja por livro, e-mail ou sistemas/aplicativos.  Assim, é importante que o morador se atente a forma determinada no condomínio para que registre sua reclamação, não bastando só lançá-la em grupo de aplicativos de mensagens.

 

 

Wanderson de Oliveira

Advogado atuante em Direito Condominial

drwandersondeoliveira.blogspot.com/

woadv.go@gmail.com

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

A dispensa de inventário e o pagamento direto

Carlos E. Elias de Oliveira - Professor de Direito Civil, Notarial e de Registros Públicos na Universidade de Brasília – UnB – e em outras instituições. Consultor Legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Advogado/Parecerista, ex-Advogado da União e ex-assessor de ministro STJ.

Instagram: @profcarloselias e @direitoprivadoestrangeiro

1. Introdução

Cuidaremos de um assunto importantíssimo para o quotidiano de quem lida com Direito Sucessório: o pagamento direto, assim entendidos os valores pagos diretamente a herdeiros independentemente de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento.

Morta uma pessoa, a regra geral é que a transmissão dos seus bens aos herdeiros deverá ocorrer por meio de um desses “burocráticos” procedimentos judiciais ou extrajudiciais, salvo quando a lei autorizar o pagamento direto. Focaremos aqui as hipóteses de pagamento direto da Lei nº 6.858/1980, que prevê esse pagamento direto para alguns casos de verbas trabalhistas, tributárias e de investimento.

O objetivo é explicar essa figura e discutir um ponto relevantíssimo: o cônjuge e os demais herdeiros podem reivindicar a sua meação e o seu quinhão na hipótese de pagamento direto?

Em outras palavras, as hipóteses de pagamento direto fundadas na Lei nº 6.858/1980 caracterizam ou não uma sucessão irregular[1] e elas devem ou não respeitar a meação do viúvo sobre os créditos do de cujus? Ou elas representam apenas regras de caráter procedimental que não exoneram o beneficiário de, no pertinente feito de inventário, fazer as devidas compensações para a repartição igualitária da herança com os demais herdeiros e para entregar a meação do viúvo?

Antecipamos nossa posição: o pagamento direto na forma da lei acima apenas tem caráter apenas procedimental, e não de direito material, pois seu objetivo foi apenas o de desburocratizar o acesso de herdeiros a valores deixados pelo de cujus. Logo, essas hipóteses não afastam o dever de respeitar a meação do cônjuge nem o quinhão de outros herdeiros. Não se trata aí de sucessão irregular ou anômala, portanto.

2. Regra geral

Verbas trabalhistas, tributários e de investimento na forma da Lei nº 6.858/1980 podem ser objeto de pagamento direto, ou seja, não dependem de prévio procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento. Dizem-no tanto o referido diploma quanto o art. 666 do CPC[2].

Explica-se.

É permitido que, independentemente de inventário ou de arrolamento, os dependentes habilitados perante o INSS ou o órgão público competente (no caso de regime especial de previdência) ou, à sua falta, os sucessores (na forma da lei civil) indicados em alvará recebam, independentemente de procedimento de inventário ou de arrolamento, as verbas trabalhistas, de FGTS ou de PIS-PASEP do falecido. É o art. caput, da Lei nº 6.858/1980.

Trata-se do que, na prática forense, designa-se de “pagamento direto”, pois é feito aos “herdeiros” sem necessidade de procedimento judicial ou extrajudicial de inventário ou de arrolamento.

Esse pagamento direto é também permitido para valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como para valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar). É o art. caput, da Lei nº 6.858/1980.

Na prática, isso significa que, se alguém morrer deixando, como herdeiro, um filho de idade inferior a 21 anos que estava habilitado como dependente do falecido no INSS[3], esse jovem poderá receber os valores supracitados (verbas trabalhistas, previdenciárias, tributárias e de aplicações financeiras) que pertenciam ao seu pai independentemente de prévio processo de inventário ou de arrolamento. Basta-lhe fazer o pedido administrativo.

O devedor (empregador, Poder Público e bancos) poderá pagar esses valores diretamente a esse filho sem exigir prévia inventário, arrolamento ou adjudicação.

Se o falecido aguardava o desfecho de alguma reclamação trabalhista para receber suas verbas trabalhistas, o filho dependente supracitado poderá requerer ao juízo trabalhista que lhe expeça alvará de levantamento sem necessidade de inventário.

2. Quem pode pedir o pagamento direto?

Nas hipóteses dos créditos especiais citados na Lei nº 6.858/1980, podem pedir o pagamento direto:

a) os dependentes habilitados perante o órgão de previdência (INSS ou, no caso de regime especial de previdência, o órgão público pertinente);

b) os demais sucessores, desde que autorizados por alvará expedido por juiz que os tenha reconhecido como tal com base na legislação civil.

Se o dependente não estiver formalmente habilitado, a Justiça Trabalhista flexibiliza a regra e admite que o dependente pleiteie o pagamento direto com base na Lei nº 6.858/1980 mediante comprovação do seu enquadramento entre os dependentes legais na forma da legislação previdenciária ou estatutária. A propósito, assim já decidiram o TST (RR-10959-59.2014.5.15.0046, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 26/06/2020) e o STJ (REsp 1289346/DF, 2ª Turma, Rel. Ministro Castro Meira, DJe 20/06/2012).

3. Levantamento de valores tributários e de investimento até 500 OTNs

Não havendo outros bens a inventariar, é cabível o pagamento direto aos dependentes habilitados no ente previdenciário das verbas tributários e de investimento mencionadas no art.  da Lei nº 6.858/1980 até o limite do valor de 500 OTNs, caso em que o valor sobejante deverá sujeitar-se ao procedimento de inventário e arrolamento. O STJ já decidiu assim em caso de valores de restituição de imposto de renda (REsp 1085140/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 17/06/2011[4]).

4. A tutela da meação do cônjuge

A morte de uma pessoa, além de gerar efeitos sucessórios, também representa o fim do casamento (a morte é metaforicamente um “divórcio celestial”) e, por isso, à semelhança do divórcio, importa na partilha de bens por conta do regime de bens à luz do Direito de Família.

No caso de verbas trabalhistas e tributárias, deve-se levar em conta a data do fato gerador de cada uma delas para se definir quais bens se comunicam em razão do regime de bens. Assim, se, durante o casamento, o empregador deixou de pagar vários salários de um empregado casado sob o regime da comunhão parcial de bens, isso significa que metade desses créditos trabalhistas pertencem à esposa do empregado por conta do regime de bens. O fato de o pagamento dessas verbas trabalhistas ocorrer somente após o fim do casamento é irrelevante: metade delas pertence à esposa do empregado, ou seja, é a meação dela (STJ, REsp 1024169/RS, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 28/04/2010).

Diante disso, indaga-se: a Lei nº 6.858/1980 permite que o dependente cadastrado no competente órgão público previdenciário ou estatutário receba integralmente as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento devidas pelo de cujus, ainda que metade delas pertençam, por meação, ao ex-cônjuge do falecido?

Entendemos que não, porque a referida lei não pode violar o direito de propriedade alheio. Ela recai apenas sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento que pertenciam efetivamente ao falecido.

Se o dependente levantar integralmente o valor, ele deverá, depois, em ação própria a ser movida pelo ex-cônjuge, repassar-lhe a meação.

Do ponto de vista operacional, se essas verbas estiverem judicializadas, o juiz deverá ser sensível a isso e, por isso, se o ex-cônjuge reivindicar sua meação mediante comprovação, o magistrado deverá respeitar essa meação e, assim, salvar a meação dos valores que serão objeto de “pagamento direto” ao dependente cadastrado no INSS (ou em pertinente órgão estatutário).

5. O direito dos demais herdeiros não dependentes no INSS ou no competente órgão estatutário

Questão tormentosa é saber a seguinte: a Lei nº 6.858/1980 transfere ou não a titularidade das verbas trabalhistas, tributárias ou de investimento exclusivamente aos dependentes cadastrados no INSS ou no pertinente órgão estatutário, excluindo os demais herdeiros da partilha desses valores?

Um exemplo pode ilustrar a pergunta.

Suponha que João tenha ganhado uma reclamação trabalhista e esteja para receber 1 milhão de reais a título de verba trabalhista. João tem dois filhos: um menor de 21 anos (o qual está devidamente cadastrado como dependente de João perante o INSS) e outro com idade superior.

Indaga-se: se João morrer, o filho menor de 21 anos poderia pedir ao juiz trabalhista que lhe pague, com exclusividade, a quantia de 1 milhão de reais? Se sim, o seu irmão poderia, em outro feito judicial na Justiça Estadual (quiçá no próprio processo de inventário), exigir que esse irmão mais novo repasse-lhe 500 mil reais ou que, no mínimo, esses 500 mil reais sejam compensados na partilha dos demais bens de João?

Há dois entendimentos em confronto.

O primeiro é o de que os arts.  e  da Lei nº 6.858/1980 estabelecem uma ordem de vocação hereditária específica (diversa da prevista no art. 1.829 do CC), em que os filhos dependentes perante o INSS ou o pertinente órgão público excluem os demais filhos. Sob essa ótica, o filho mais novo embolsará o valor de 1 milhão de reais e, ainda por cima, poderá reivindicar metade dos demais bens deixados por seu pai no processo de inventário em que concorrerá com seu irmão mais velho.

O segundo é o de que os referidos dispositivos, no particular, são regras de natureza processual e, por isso, apenas objetivam livrar o dependente cadastrado perante o INSS ou o órgão público pertinente da burocracia e da morosidade que a exigência de processo de inventário ou de arrolamento imporia.

Preferimos essa segunda interpretação, pois a finalidade do referido dispositivo nos parece ser a de impedir que os dependentes previdenciários ou estatutários do de cujus não tenham de enfrentar burocracias e longos anos para receberem o seu quinhão sobre as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento do de cujus. A finalidade é apenas processual: dispensar a realização de procedimentos de inventário. Não há finalidade de direito material nesse ponto: a Lei nº 6.858/1980 não pretende alterar a ordem de vocação hereditária prevista no art. 1.829 do CC.

Por isso, entendemos que, se, no exemplo acima, o filho mais novo levantar o valor de 1 milhão de reais perante a Justiça Trabalhista, o seu irmão poderá exigir dele 500 mil reais ou, se houver outros bens do de cujus, exigir que essa quantia seja compensada na partilha desses outros bens.

Entendimento contrário nos faria chegar ao absurdo de concluir que a atribuição patrimonial seria diferente por uma questão meramente cronológica. Explica-se. No exemplo acima, se o juiz trabalhista tivesse transferido o valor de 1 milhão de reais para João um dia antes da sua morte, esse dinheiro iria ser partilhado, pro rata, entre os dois filhos no procedimento de inventário. Todavia, se esse pagamento estivesse pendente à data da morte de João, o seu filho mais novo poderia, sozinho, embolsar o valor de 1 milhão de reais e deixar o seu irmão a ver navios, sem um centavo daquele valor. De fato, como lembrava Teixeira de Freitas - citando brocardos latinos clássicos listados por Simão Vaz Barbosa Lusitano - “interpretação se deve fazer, que não resulte absurdo” (interpretatio facienda est, ut ne sequatur absurdum)[5].

Por fim, é preciso repelir alegações de índole humanitária em sentido contrário, pois, para efeito de manter o sustento do dependente cadastrado no INSS ou no pertinente órgão estatutário, há benefícios previdenciários específicos para tanto, os quais sequer são considerados herança, a exemplo da pensão por morte. Não é esse, ao menos de modo primário, o papel dos créditos especiais listados na Lei nº 6.858/1980.

O STJ, tangenciando o caso ora enfocado, acena favoravelmente a essa orientação, ao reconhecer que as verbas trabalhistas discutidas em juízo integram o monte a ser repartido entre todos os herdeiros, afastando interpretação do art.  da Lei nº 6.858/1980 que resultasse em conclusão diversa (STJ, AgInt no AREsp 1561551/SP, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe 30/06/2020; CC 108.166/PE, 2ª Seção, Rel. Ministro Sidnei Beneti, DJe 30/04/2010; CC 95.176/RS, 2º Seção, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, DJe 09/12/2008; REsp 1155832/PB, 4ª Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Rel. p/ Acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 15/08/2014[6]).

6. Reversão dos valores para fundos no caso de falta de herdeiros

No caso de inexistir herdeiros ou dependentes, as verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas na Lei nº 6.858/1980 se reverterão em favor de Fundos na forma do § 2º do seu art.  e do parágrafo único do seu art. 2º.

Tais hipóteses representam normas de direito material aptas a afastarem a regra geral da sucessão legítima, segundo a qual os bens de falecido que não deixou herdeiros se revertem ao Poder Público pelo procedimento da herança jacente e vacante na forma dos arts. 1.819 ao 1.823 do CC.

7. Conclusão

Temos que, salvo as hipóteses de ausência de herdeiros (§ 2º do art.  e o parágrafo único do art.  da Lei nº 6.858/1980), o “pagamento direto” das verbas trabalhistas, tributárias e de investimento previstas nos arts. 1º e 2º da Le nº 6.858/1980 decorre de regra de natureza processual e destina-se a afastar apenas o caminho burocrático dos procedimentos de inventário e de arrolamento para que o dependente habilitado levante rapidamente os valores. Não é por outra razão que a previsão de pagamento direto é prevista na legislação processual (art. 666 do CPC), e não propriamente na legislação de direito material (ou seja, no Código Civil).

Nessa esteira, aquele que receber o “pagamento direto”, ainda que em sede de processo judicial específico (como no inventário ou em uma ação de procedimento comum proposta pelo interessado), deverá atentar para a meação do viúvo e para o quinhão hereditário dos demais herdeiros.

A exceção corre à conta das hipóteses em que não houver herdeiro ou dependente na forma do § 2º do art.  e do parágrafo único do art.  da Lei nº 6.858/1980, caso em que os valores se reverterão a fundos em vez de seguir o procedimento de herança jacente e vacante dos arts. 1.819 ao 1.823 do CC.

Nessa ordem de ideias, em termos de classificação, pode-se considerar que o § 2º do art.  e o parágrafo único do art.  da Lei nº 6.858/1980 estabelecem uma sucessão anômala ou irregular apenas para os casos de falta de herdeiros ou de dependentes, afastando a regra das heranças jacente e vacante dos arts. 1.819 e 1.823 do CC. No mais, a referida norma tem efeitos apenas procedimentais e, portanto, não afasta o regime de direito material da sucessão legítima prevista no art. 1.829 do CC.

  1. A sucessão irregular ou anômala é entendida como aquela que é regida por normas próprias e que, portanto, não segue os arts. 1.829 e seguinte do CC. A título de exemplo, podemos citar: (1) a transmissão dos direitos autorais para o domínio público no caso de o autor falecido não ter deixado herdeiros (art. 45I, da Lei nº 9.610/1998); (2) o direito de acrescer em favor dos demais coautores na hipótese de um deles falecer sem deixar herdeiros (art. 42parágrafo único, da Lei nº 9.610/1998); (3) o art. 18, § 2º, do Decreto-Lei nº 3.438/1941 proíbe que sucessão em favor de cônjuge estrangeiro em terreno de marinha; (4) o art. 520 do CC estabelece que o direito de preferência não se transmite aos herdeiros, o que representa um exemplo de sucessão irregular ou anômala, porque prevê regra sucessória diversa da prevista para a sucessão legítima; (5) o art. , § 2º, da Lei nº 6.858/1998 estabelece que, na hipótese de inexistir dependente ou sucessores, as verbas trabalhistas, de FGTS e de PIS-PASEP deverão ser revertidas respectivamente em favor do Fundo de Previdência e Assistência Social, do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço ou do Fundo de Participação PIS-PASEP; (6) o art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 6.858/1998 fixa que, se não houver dependente ou sucessor, deverão ser revertidas ao Fundo de Previdência e Assistência Social os valores devidos a título de restituição de Imposto de Renda (ou de outros tributos) bem como os valores de até 500 OTNs em aplicações financeiras ou em contas bancárias (desde que inexista outros bens a inventariar). 

  2. “Art. 666. Independerá de inventário ou de arrolamento o pagamento dos valores previstos na Lei nº 6.858, de 24 de novembro de 1980.” 

  3. Para filhos, a presunção absoluta de dependência perante o INSS e, no caso de regime especial de previdência, perante os órgãos públicos federais é para filhos de até 21 anos (art. 16I, da Lei nº 8.213/1991 e art. 197parágrafo únicoI, da Lei nº 8.112/1990). 

  4. No caso, o STJ manteve o deferimento do pedido de alvará judicial, conforme este excerto do relatório do voto do relator:

    “Silvandira Stopa Rodrigues ajuizou pedido de alvará judicial perante a 3ª Vara de Família e Sucessões do Foro Regional de Santana/SP, pleiteando o levantamento de parte da restituição de imposto de renda de seu falecido marido. Noticiou ainda que não há outros bens ou direitos a inventariar, e também que, do casamento, advieram quatro filhos, sendo que três renunciaram as partes que lhes tocariam no imposto retido. Assim, pleiteou a autora o levantamento de 50% devidos a ela, a título de meação, mais 4/5 do remanescente em razão da renúncia.” 

  5. FREITAS, Augusto Teixeira. Regras de Direito. São Paulo: Lejus, 2000, p. 122. 

  6. Convém, por seu didatismo, a leitura do inteiro teor do voto da Ministra Isabel Gallotti nesse último julgado.