Os riscos e as vantagens da assembleia virtual em condomínios edilícios
A discussão sobre a possibilidade jurídica e sobre os lineamentos da
assembleia geral de condomínio feita em ambiente virtual não é uma
novidade. Muito ao contrário, é um assunto recorrente e uma reclamação
antiga dos envolvidos no cotidiano do condomínio edilícios. Muitos
síndicos em um primeiro contato com os temas jurídicos se perguntam por
qual motivo isso já não é uma realidade. O baixo nível de engajamento
dos condôminos com os assuntos do condomínio é sempre um fator que
provoca as discussões, reforçando os pleitos por algum meio legítimo e
seguro de realização virtual de assembleias de condomínio.
O condomínio é uma situação jurídica complexa que tem relação muito
estreita com o direito fundamental à propriedade, que por sua vez é uma
garantia constitucional das mais densas. E quanto maior a densidade
constitucional de um direito, maior é a preocupação com segurança
jurídica enquanto valor a ser considerado em eventual ponderação de
interesses.
Logo, apesar das inúmeras e indiscutíveis vantagens de se
realizar por ambiente virtual uma assembleia de condomínio, vivemos sob a
égide de um Estado Democrático de Direito e precisamos nos ater aos
limites e possibilidades da lei, que não prevê essa modalidade. Esse
silêncio normativo, que tem por si só já tem uma carga sentido
interpretativo, permite também algumas interpretações. https://drwandersondeoliveira.blogspot.com/
Sumarizando
as possíveis interpretações, temos: I) a impossibilidade, diante da
exigência legal de ato presencial; II) a possibilidade, desde que haja
previsão na convenção de condomínio; e II) a possibilidade, salvo
vedação na convenção de condomínio.
O Código Civil é silente
quanto à modalidade de assembleia de condôminos, não havendo disposição
que permita e nem que vede realização de assembleia virtual. Trata-se,
obviamente, de disposição consentânea com o contexto social em que foi
discutido e promulgado o Código Civil de 2002.
Pode parecer uma
realidade distante no mundo hiperconectado em que vivemos hoje, e mais
distante ainda considerando a ampla gama de ferramentas que
possibilitariam, agora, a realização do ato. Entretanto, no longínquo
ano de 2002 as ferramentas para videoconferência ou não existiam ou bem
não eram acessíveis ou seguras o suficiente para representar solução
legal. https://drwandersondeoliveira.blogspot.com/
É razoável supor, portanto, que a possibilidade de
assembleia virtual de condôminos nunca foi algo seriamente cogitado no
âmbito legislativo, simplesmente porque as tecnologias necessárias para
viabilizar o ato não forneciam os meios para tanto.
Independentemente
dos motivos que animaram essa escolha legislativa, é um fato
inarredável o de que sempre que a lei trata da assembleia geral de
condôminos se refere ao ato como um ato presencial. Os artigos 1.352 e
1.353 fazem referência expressa ao vocábulo "presentes", sendo razoável
presumir daí que há a necessidade de presença física do condômino. Se há
a necessidade de presença física dos condôminos para o ato, por
interpretação sistemática, seria juridicamente impossível a realização
do ato por ambiente virtual.
Essa é, portanto, a primeira
possibilidade interpretativa: a mais literal e conservadora
interpretação das normas aplicáveis ao caso. A realização de assembleia
geral de condôminos pela modalidade virtual é juridicamente impossível,
diante de expressa disposição legal determinando que o ato seja
presencial.
Há outros dois caminhos possíveis que merecem destaque, cada qual com seu respectivo fundamento.
É
possível supor a realização de assembleia virtual, desde que haja
previsão para tanto na convenção de condomínio. Essa assertiva
encontraria arrimo no artigo 1.350 do Código Civil, pois, alegadamente, o
síndico poderia convocar assembleia geral de condôminos "na forma
prevista na convenção".
Esse posicionamento tem, de fato, alguns
acertos. O primeiro deles é o de que determinadas matérias podem ter
disposição livre em convenção de condomínio. A forma de convocação da
assembleia é uma delas. Pode o condomínio, portanto, dispor em convenção
como os condôminos serão informados da existência de uma assembleia. Se
será por carta registrada, e-mail, afixação de edital em mural,
pombo-correio, sinal de fumaça, aviso do porteiro e por aí vai.
Ocorre
que essa liberdade prevista no artigo 1.350 se limita à forma de
convocação, e não pode ser espraiada para as demais disposições
cogentes, não derrogáveis pela convencionalidade. Essa é uma
interpretação fruto de simples análise sistemática da norma, em cotejo
com as demais disposições alusivas à assembleia. Parafraseando Eros
Grau, o ordenamento jurídico não se interpreta em tiras.
Noutro
giro, mesmo que se interprete que a norma no sentido de que há a
liberdade para que a convenção de condomínio disponha sobre a forma de
realização do ato em si, e não da convocação, ainda assim subsiste a
limitação legada pela expressa previsão de ato presencial, o que retira
do espaço de discricionariedade convencional, por assim dizer, da
convenção de condomínio.
A convenção de condomínio pode dispor
sobre matérias cuja disposição legal lhe seja franqueada, ou sobre
aquelas matérias em que não há disposição legal. Não é juridicamente
possível, entretanto, que a convenção disponha sobe matéria cogente, ou
seja, sobre os temas dos quais já se ocupa a lei.
Essas são
conclusões que encontram fundamento na interpretação mais franca do
princípio da legalidade no âmbito das relações civis, em que é permitido
ao particular fazer o que a lei não proíbe.
A segunda
interpretação possível, portanto, é a que defende a possibilidade da
realização de assembleia virtual, diante da interpretação do artigo
1.350, que alegadamente permite inferir que a convenção de condomínio
pode dispor sobre o modo de realização da assembleia, inclusive podendo
dispor que ela seja feita virtualmente.
O princípio da legalidade
nas relações privadas é também um dos temais que toca ao terceiro
posicionamento, no qual se sustenta que a realização de assembleia
virtual é possível, salvo vedação na convenção de condomínio.
Essa
assertiva não parece ser a mais acertada, uma vez que ignora
disposições legais que fazem alusão expressa ao ato enquanto ato solene e
presencial. Com efeito, a assertiva de que a assembleia virtual é
possível, salvo disposição em contrário, seria válida caso a lei não
dispusesse absolutamente nada a respeito. Nesse cenário hipotético, essa
interpretação seria defensável, pois decorrente do princípio da
legalidade nas relações privadas: ao particular é dado fazer tudo quanto
a lei não lhe vedar.
Ocorre que não é esse o caso: existe
disposição legal expressa que conduz à interpretação de que o legislador
cunhou o ato como presencial. E infelizmente o particular deve
interpretar a lei dentro de seus limites semânticos, sob pena de se
descolar do Estado Democrático de Direito e empreender em verdadeira
atividade legislativa.
A terceira interpretação, portanto,
sustenta que a assembleia virtual é possível, desde que não haja vedação
na convenção de condomínio. https://drwandersondeoliveira.blogspot.com/
Feitas as colocações sumárias sobre
as possibilidades interpretativas que a lei dá, nos cabe esclarecer que
há a impressão de que os posicionamentos pela possibilidade de
realização de assembleia virtual não teriam fundamento legal adequado.
Primeiramente,
quanto à interpretação do artigo 1.350, vale destacar que esta não se
sustenta em uma análise sistemática do ordenamento, considerando que o
Código Civil prevê uma séria de matérias que escapam à possibilidade de
disposição na convenção. E certamente o faz com o fito de proporcionar
ao proprietário de bem imóvel em condomínio maior grau de segurança
jurídica.
Há aqui um clássico embate entre formalismo e
efetividade. Não se trata de um debate novo, já tendo sido o tema
estudado por ocasião das pesquisas de formalismo-valorativo no processo
civil, com grande contribuição de Alvaro de Oliveira. Sempre que se
busca mais efetividade nas relações jurídicas, o formalismo e, por via
reflexa, a segurança jurídica sofrerão prejuízos.
Ocorre que o
direito de propriedade é relevante demais para o ordenamento para que se
permita que as convenções de condomínio disponham sobre a substância do
ato, tendo a lei determinado um nível mínimo de formalidade na
necessidade de realização presencial do ato. Essa lógica vale também
para o posicionamento de que é viável a assembleia virtual, salvo
disposição em contrário.
Essa assertiva inverte a polaridade dos
atos civis, tornando regra o que é exceção. Trata-se de medida
contraditória, posto que certamente os atos da vida civil que levaram à
constituição do condomínio e à aquisição da propriedade foram realizados
presencialmente. Seria, para dizer o mínimo, surpreender o
condômino determinando a realização de assembleia no formato virtual
apenas porque a convenção não prevê essa limitação. Essa interpretação,
com as devidas vênias, nos parece bastante problemática.
Já em um
viés mais pragmático, não há como deixar de reconhecer a utilidade e as
vantagens de uma assembleia virtual. E nem há como negar que é um futuro
inescapável, e já uma realidade alcançada por via oblíqua nos
aplicativos de bate-papo em grupo, que acabam, de maneira indevida, se
tornando o palco para os debates que deveriam ser realizados na reunião
de condomínio. Tais soluções representam muito ruído e pouca
efetividade, acabando por prejudicar os mecanismos institucionais do
condomínio.
Há de se considerar, por outro lado, que nem todo
condômino tem a obrigação de ter a disposição e a intimidade com a
tecnologia que a assembleia virtual demandaria. Assim, colocar essa
modalidade como a regra poderia ter o injusto efeito colateral de
excluir determinados condôminos, seja porque não dispõem dos meios
tecnológicos, seja porque simplesmente não possuem esta aptidão. Basta
lembrar, nessa senda, de condomínios com alto número de idosos, muitos
dos quais não possuem, de maneira absolutamente justificável,
familiaridade com as ferramentas de virtualização. https://drwandersondeoliveira.blogspot.com/
Qual seria, então, a solução?
O problema, muito claramente, existe. Há um descompasso entre o fato
social e a moldura legal aplicável ao cotidiano. É dizer, noutras
palavras, que as relações condominiais já evoluíram para os meios de
comunicação telemáticos, cabendo ao ordenamento jurídico regular da
melhor forma possível estas relações jurídicas. Não nos cabe, enquanto
aplicadores do Direito, apenas apontar os problemas e repousar sobre os
defeitos das soluções que já existem. É oportuno que se aponte também um
caminho.
Assim, diante dos limites do ordenamento posto,
entendemos que a realização de assembleia virtual passa necessariamente
por uma alteração legislativa, que deverá regulamentar minimamente a
modalidade de assembleia virtual, antevendo alguns potenciais problemas.
Alguns
elementos dessa regulamentação atenderiam às preocupações de se evitar a
exclusão de condôminos, de criar quebras de isonomia, bem como à
necessidade de se proporcionar sistemas auditáveis de deliberação, que
evitem abuso de poder pelo síndico.
Enquanto uma alteração
legislativa não acontece, o condomínio que desejar regulamentar a
atuação de seus órgãos em ambientes virtuais poderá fazer uso de toda
sorte de ferramentas virtuais para proporcionar amplo debate,
amadurecendo questões e manifestações dos condôminos em ambiente
virtual. Bons exemplos disso são enquetes, que fornecem ao síndico um
bom termômetro para a prática de atos de gestão.
Nada obsta que a
discussão dos temas tenha início no ambiente virtual, ganhando em
amadurecimento e em engajamento dos condôminos. Com toda a publicidade e
didática possível, e preferencialmente com arrimo em deliberações
assembleares, o condomínio pode eleger meios virtuais para colher
manifestações de vontade diversas dos condôminos, que podem dar sustento
à atos de gestão, principalmente em questões mais triviais.
No
entanto, apesar de todas as vantagens, com o esquadro legal que temos
hoje, toda e qualquer deliberação, por mais que tenha os debates
previamente amadurecidos pelo ambiente virtual, deve terminar em uma
deliberação presencial, com especial destaque para os temas sensíveis,
como prestação de contas e eleição de síndico. O PL 1.179/2020, o qual
dispõe sobre o regime jurídico emergencial transitório por força das
repercussões da Covid-19 nas relações privadas, possui previsão de
assembleia virtual, em caráter temporário por causa da impossibilidade
de realização de assembleias presenciais, considerando a necessidade de
isolamento social para combate à Covid-19. O referido projeto de lei,
ainda em trâmite no Congresso, prevê que a manifestação de vontade do
condômino por ambiente virtual fica equiparada à assinatura presencial.
Muito
embora o projeto de lei não trate de aspectos relevantes, como a
exigência de utilização de sistemas auditáveis e a garantia de
participação de condôminos pelos meios analógicos, se assim desejarem,
trata-se de solução emergencial louvável, que coloca no caminho certo a
discussão jurídica sobre o tema.
Por fim, espera-se que este tipo
de debate oportunizado pelas circunstâncias absolutamente adversas da
pandemia possa provocar, de maneira segura e responsável, a modernização
nas relações condominiais, de maneira estável, previsível e segura.
Fabio Lindoso e Lima é
advogado especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro
Universitário de Ensino Superior do Amazonas (Ciesa), e ex-presidente da
Comissão de Arbitragem da OAB-AM.
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-mai-10/lindoso-lima-assembleia-virtual-condominios-edilicios
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